Nuno Júdice - Receita para fazer o azul



Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.


      "O livro de como se fazem as cores" é um dos mais conhecidos manuscritos judaico-portugueses e uma importante fonte do dialecto falado pelos judeus em Portugal antes do édito de expulsão de 1496. O texto é um tratado técnico em 45 capítulos sobre a produção de tinta para a arte da iluminura. Tradicionalmente atribuído a Abraão ben Judah Ibn Hayyim e datado de 1262, um estudo mais aprofundado do manuscrito coloca-o no século XV, usando fontes mais antigas. Nuno Júdice descreve-o aqui em poesia.

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