No cinema, não há
memória de ninguém ter amado um burro como Anne Wiazemsky amou Balthazar. O
filme, “Au Hasard, Balthazar”, realizou-o Robert Bresson, inspirando-se no
“Idiota” de Dostoievsky. Balthazar, mais jumento que rei mago, passa pelas sete
cruéis provações a que chamamos pecados capitais. À ascética menina e ao burro
de focinho branco consola-os uma lenta e cândida ternura e o filme é um dos
mais belos que os meus olhos já viram.
Do burro não sei, mas
sei que todos queriam a menina. Em 1965, a adolescente Anne Wiazemsky, neta do
escritor católico François Mauriac, foi escolhida por Bresson por ter um
talento sublime: nunca ter representado antes. A conjugação da sua
reservadíssima beleza com uma voz capaz de encher uma catedral despertou em
Bresson um método possessivo e integral: durante as filmagens não lhe permitiu
que saísse um segundo do seu raio de visão e forçava-a a dormir na sua cama.
Anne rechaçou-o quando Bresson se propôs chegar a essa húmida abjecção chamada
beijo na boca.
Veio então Godard às
filmagens. Apaixonaram-se. Anne tinha 19 anos e queria estudar filosofia em
Paris. Ele tinha 37, acabadinho de se separar de Anna Karina. Era um romance
impróprio. Anne contou ao avô. Em Paris, nesse tempo, exibiam-se todo o tempo
todos os filmes. Mauriac e a neta foram ver “A Bout de Souffle”. Mauriac achou
o filme admirável e disse à neta que seria uma honra ter Godard como neto. Ela
contou-lhe e ele, comovido e com aquela generosidade que um ego inflamado
municia, disse, com originalidade, que era uma honra ter Mauriac como avô. Na
única nota de rodapé da sua vida, Wiazemsky sublinha: Godard gostava sempre de
ter a última palavra.
Godard filmou “La
Chinoise” e deu a Wiazemsky a personagem de uma militante maoista, antecipando
o Maio de 68 que logo chegou. Anne aborreceu de morte ler Marx, Engels e o
velho Mao. Mas doeu-lhe mais que Godard, militante furioso, quisesse que todos
os gaullistas, o que incluía o avô, fossem fuzilados – entre aspas, disse ela –
enquanto Mauriac, magnânimo, achava que os arroubos de Godard eram só pecados
desse resto de juventude que aflige quem chega ao fim dos trinta anos. Não
admira que, os olhos num e os olhos noutro, Wiazemsky tenha acabado por
escolher os livros contra os filmes. Desistiu dos dois, agora.
Publicado no Expresso, sábado, dia 21 de Outubro.
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